PROFESSORA SÔNIA – Bom dia, turma! Olha eu de volta, depois de um longo período de tratamento de uma tendinite adquirida no doutorado. Enfim de volta à docência, agora como professora voluntária desta escola. Estava bastante ansiosa para vivenciar o novo ensino médio. É
impressionante como a Lei 10.145/2017 modernizou essa etapa da
formação, concordam? Os jovens agora aprendem novos conteúdos e
podem de fato escolher os “itinerários formativos” conforme a afinidade
que cada um possui com as áreas do conhecimento. “Protagonismo
juvenil”, não é do que estamos falando?! Agora pensem pelo lado dos
professores: podemos propor “trilhas de aprofundamento”, orientá-los
sobre “projetos de vida” e outras novidades que, confesso, muitas delas
ainda não entendo muito bem, mas o importanteé que tem coisa nova! Pois
bem, hoje iniciamos o nosso curso de “Produção de brigadeiro caseiro”.
CRISÁLIA – Profes...sora, desculpe interrompê-la, acho que fui sua aluna
na Escola do Jacarezinho, há uns dois anos. A senhora não dava aula de
Geografia?
PROFESSORA SÔNIA – Oi Cris, infelizmente não me lembro de você. Você
tem razão, sou professora de Geografia e fui substituta naquela escola.
Acontece, Cris, que o NEM (Novo Ensino Médio) permite essa
“flexibilidade”. Agora, os professores não ficam restritos às suas áreas de
formação, até porque a carga horária de seus “componentes” foram
reduzidas progressivamente ao longo do ensino médio. Isso obriga
professores e professoras a saírem de sua zona de conforto, entende? Eu
estou adorando esse desafio! Afinal, sempre fui uma pessoa resiliente.
CRISÁLIA – Mas professora, a senhora não estudou pra dar aula de
Geografia? Quero dizer... a senhora não passou 4 anos na Universidade
aprendendo a ser professora de Geografia? E agora não é ruim, não
praticar o que a senhora aprendeu? Geografia é tão difícil, a senhora não
vai desaprender?
PROFESSORA SÔNIA – Então Cris, eu não me afastei da Geografia, ela
apenas está pulverizada na matriz curricular, entende? Assim como a
história, a sociologia, a filosofia. Na verdade, onde olharmos veremos a
geografia.
CRISÁLIA – Professora, desculpe a insistência, prometo que é a última
pergunta. É que o antigo professor, que se aposentou, insistia que a
Geografia era fundamental pra entender a sociedade, especialmente as
desigualdades sociais nos territórios. Ele gostava de falar de território.
Tudo era território. Território pra cá, território pra lá... Dizia que em tudo
havia relações de poder, disputas, conflitos, resistências. Daí eu te
pergunto, essa Geografia “pulverizada” – gostei dessa palavra, professora
– não dificulta o entendimento da sociedade, do território, das relações de
poder e tudo mais?
PROFESSORA SÔNIA – Não não, Cris. Como eu te disse, a Geografia
continua aí. Claro que não é essa Geografia ideológica do seu antigo
professor. São conhecimentos científicos da Geografia. Mas... Crisália,
vamos começar o nosso curso de produção de brigadeiro caseiro?
Começaremos pelos ingredientes: leite, açúcar, manteiga e cacau.
GENILDO – Professora, já temos um problema: o preço do leite. Viu o
quanto está caro? Lá em casa passamos a beber composto lácteo. Dizem
que não é recomendado para crianças, mas o Vanildo, meu irmão de 2
anos, toma todos os dias. Dá pra fazer brigadeiro com ele?
PROFESSORA SÔNIA – Genildo, de fato não é recomendável, o composto
lácteo tem substâncias que contribuem para a obesidade infantil e também
para diabetes. Mas oh, basta ficar atento às promoções dos grandes
supermercados. É só uma questão de pesquisa.
LUDMILA – Professora, eu tenho uma curiosidade sobre o cacau. Meus
pais são baianos, vieram pra cá antes de eu nascer. Eles me contaram que
meu avô, pai do meu pai, trabalhava numa lavoura de cacau e que
apareceu uma praga e arrasou boa parte da produção. Eu lembro do ano,
1995, pois foi quando meus pais se casaram. Meu avô teve que vender o
sítio e mudou para Ilhéus. Até hoje eu sei que têm muitos conflitos que
envolvem a cadeia produtiva do cacau. A gente vai aprender sobre eles?
PROFESSORA SÔNIA – Não, Ludmila. Não teremos uma aula de história ou
dessa geografia ideológica que vocês se recordam. Lembre do título do
nosso curso: “Produção de brigadeiro caseiro”. Se adentrarmos à história
e aos pormenores de cada ingrediente, teríamos que voltar ao Brasil
Colônia e às plantations (ções) de cana-de-açúcar! Aqui, não vamos ficar
de blá-blá-blá, me interessa capacitá-los para o mercado de trabalho. Meu
objetivo é que vocês se tornem empreendedores de sucesso!
CÍCERO – Professora, só mais uma pergunta. Acho legal esse negócio de
empreendedorismo, mas eu queria mesmo era fazer uma faculdade de
Engenharia Mecatrônica. É o sonho do meu pai. Ele trabalha no setor de
reparos da FORD há mais de 20 anos e sempre fala: “um dia eu quero ver
um dos meus entrando pela porta da frente”. Então professora, isso aí que
a senhora vai nos ensinar é matéria de vestibular?
JOANA – Boa pergunta, Cícero. Eu também quero ir para a Universidade,
cursar Engenharia Florestal!
CRISTINA – Eu, Veterinária!
MARGARIDA – Odontologia!
FREDERICO – Enfermagem!
SILVIO – Artes Visuais!
PROFESSORA SÔNIA – Vejam só, Cícero e demais, apesar de não cair no
vestibular, esse conhecimento pode ser muitíssimo útil à vida de vocês,
sabiam? Inclusive, a fabricação de brigadeiro caseiro pode ser a principal
fonte de renda num cenário em que não consigam acessar a universidade,
já que a maioria optou por cursos muuuuuito difíceis. Como eu disse,
podem se transformar em empreendedores de sucesso e serem seus próprios
patrões, não seria maravilhoso?! Sabiam que as micro/pequenas empresas
representam 99% das empresas brasileiras? Pensaram sobre isso?
INSPETOR – Atenção, turma! Fim da aula de “Produção de Brigadeiro
Caseiro”. Reorganizem-se nas carteiras porque em breve daremos início à
aula “O que rola por aí”. ■ ■ ■
OBS. Os textos expressam a opinião de seus autores, não necessariamente coincidente com a dos coordenadores do Blog e dos participantes do Fórum Intersindical. A cada reunião ordinária, os textos da Coluna Opinião do mês são debatidos, suscitando divergências e provocando reflexões, na perspectiva de uma arena democrática, criativa e coletiva de encontros de ideias em prol da saúde dos trabalhadores.